Impotentes e perplexos temos assistido ao discurso da razão cínica, que se sabe falso, mas que, arrogante, é momentaneamente útil para justificar os fins pretendidos, eficiente para o pragmatismo de resultados, no qual não passam de mera aparência a verdade e a própria honestidade intelectual e moral. O discurso da razão cínica está presente nas justificativas das enchentes que matam os trabalhadores, tal como aconteceu em SC, SP, e, agora, no RJ. Os políticos de sempre responsabilizam os céus pelo caos que atinge as cidades e as vítimas, que teimam em ocupar estas áreas e resistem a deixá-las, mesmo na iminência de uma tragédia.
Ora, a manutenção de ocupações impróprias nas áreas urbanas é uma decisão política e é padrão nas cidades brasileiras. Segundo a geógrafa Odete Seabra, “é justamente nas áreas rejeitadas pelo mercado imobiliário e nas áreas públicas situadas em regiões desvalorizadas que a população trabalhadora consegue se instalar; assim, as ocupações ilegais, como as favelas, são largamente toleradas quando não interferem nos circuitos centrais de realização do lucro imobiliário.” (Revista Caros Amigos, nº 156).
Aqui em SM, a construção da Perimetral D. Ivo Lorcheister serviu de mote para a então prefeitura do PT alardear a revitalização do Arroio Cadena. Na verdade o que se fez foi a simples canalização do arroio para aumentar o potencial imobiliário da área, loteá-la e valorizar as áreas próximas. Quem duvida disso deve observar o que prospera mais rapidamente ali: a pretensa revitalização ou os empreendimentos imobiliários.
Para viabilizar o lucro imobiliário, sob o manto da revitalização do Cadena, afinal discurso ecológico rende votos, 60 famílias foram removidas das margens do Arroio para a construção da Perimetral. Foram transferidas para local provisório com a promessa de que em seis meses iriam para um local definitivo. Elas continuam esperando e vivem em péssimas condições de vida: o esgoto está a céu aberto, a luz só chega através de “gato” e os banheiros coletivos são inutilizáveis.
Assim, não é difícil entender o porquê de os trabalhadores não aceitarem o remédio da remoção, que é uma das possibilidades. A professora da USP, Raquel Rolnik, é enfática ao dizer que “casa não é quatro paredes e um teto, e pessoa não é uma coisa que você arranca de onde ela tem uma vida, de onde ela tem um emprego, de onde os filhos estudam, de onde ela está há cinqüenta anos, e a enfia num lugar qualquer.”
Portanto, não é por acaso, muito menos por um desígnio cruel de Deus, que as vítimas das enchentes sejam, esmagadoramente, os pobres. São eles que sofrem a ausência de política habitacional, porque não há oferta de alternativas aos que moram em áreas de risco, porque não há limpeza urbana adequada nas comunidades, porque não há manutenção em galerias pluviais e fluviais, porque não há educação ambiental para todos.
O discurso da razão cínica chega ao governo Lula. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) protocolou representação ao Procurador-Geral da República requerendo investigação sobre a liberação de recursos pelo Ministério da Integração Nacional, então dirigido por Geddel Vieira Lima, em menor percentual aos Estados mais prejudicados pelas enchentes. O Tribunal de Contas da União detectou que o Estado da Bahia teria recebido aproximadamente 65% dos recursos, sem observância de parâmetros técnicos e atendimento à legislação, com destinação ao semi-árido, enquanto que apenas 0,9% e 3% do montante foram repassados ao RJ e SC. Por uma peculiar “coincidência”, Geddel Vieira Lima deixou o ministério dias atrás para concorrer ao governo da Bahia em 2010.
O discurso da razão cínica pode ser sustentado na emoção e no choro, como o de Lula, ao saber que o Brasil receberia mega eventos como os jogos Pan-americanos e, agora, a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Tais eventos são instrumentos de transferência de dinheiro público para as empreiteiras financiadoras de campanhas eleitorais, que enxergam as cidades como lugar de negócios e o solo urbano como mercadoria. Em função desses mega eventos, grandes contingentes populacionais virão para as cidades, agravando o já debilitado espaço físico e trazendo outras tragédias humanas.
Pior de tudo é que o discurso da razão cínica não é privilégio dos políticos de sempre, mas também dos defensores do sistema do capital, que, diante de tudo isso dirão que este é o custo a ser pago para o desenvolvimento, do capital, é claro.
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