
No sétimo dia da morte do colono Elton Brum da Silva, nos dirigimos até o município de São Gabriel, na Fazenda Southall, para o ato ecumênico que reuniria os sem terras, padres, pastores, freiras, trabalhadores e estudantes.
Fizemos uma caminhada em direção ao local onde Elton foi assassinado e simbolicamente arrancamos as cercas que nos separavam deste local. Pudemos ver e sentir a dor estampada nos rostos de homens, mulheres e crianças; o respeito pelo companheiro morto; gritamos com o punho erguido que "aos nossos mortos, nem um minuto de silêncio: toda uma vida de luta"; entoamos canções dizendo que na última fronteira do possível, tombaremos; sentimos o amor, o compromisso e a solidariedade dos lutadores que ali estavam.
Ouvimos com indignação e profundo respeito os testemunhos dos sem terras, verdadeiros párias brasileiros, os quais relataram que no momento da retirada da área todos estavam “com as mãos na cabeça, deitados no chão e com a cara no barro” e, mesmo assim, ouviram os tiros, o latido dos cachorros avançando sobre mulheres e crianças, os gritos e choros. O resultado da ação dos “Rambos Gaúchos” foi a morte de Elton e dezenas de feridos por estilhaços, espadas e mordidas de cães, tudo sob o olhar cúmplice do Ministério Público Estadual de São Gabriel.
Recebemos de cada criança um punhado de terra da Fazenda Southall, guardada sob um tecido de cor vermelha, simbolizando o sangue ali derramado e a esperança de quem luta. Embora a tenra idade, o olhar dessas crianças era firme, altivo e endurecido pelos desaforos já ouvidos, e nos diziam que, tal como seus pais, não se deixarão morrer à míngua e na subserviência como muitos querem.
Durante o ato ecumênico, lembrei de José Saramago, escritor português, que ao prefaciar o livro de fotografias “Terra”, de Sebastião Salgado, resumiu a agonia dos pobres e excluídos desse País. Disse ele que, certa feita, Deus quis mudar seu nome para outro, mais humano e anunciou a multidão: “A partir de hoje chamar-me-eis Justiça. E a multidão respondeu-lhe: Justiça, já nós a temos, e não nos atende. Disse Deus: Sendo assim, tomarei o nome de Direito. E a multidão tornou a responder: Direito, já nós o temos, e não nos conhece. E Deus: Nesse caso, ficarei com o nome de Caridade, que é um nome bonito. Disse a multidão: Não necessitamos caridade, o que queremos é uma justiça que se cumpra e um direito que nos respeite.”
O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, no testemunho do ex-senador José Paulo Bisol é uma “...coletividade de párias, certamente a única organização, a mais consciente em relação à sua identidade e por isso a mais competente.” É uma coletividade de condenados que não consegue ser ouvida por nenhuma instância do Estado: o Executivo não avança na reforma agrária; o Legislativo só se lembra dela para criminalizar suas entidades representativas; o Judiciário, tão rápido na concessão de ordens de despejo, não prende os que assassinam suas lideranças nem resolve em tempo razoável os processos de desapropriação; o Ministério Público Estadual do RS e de São Gabriel não honra o seu dever constitucional de proteção à dignidade humana, posicionando-se contra os Sem Terras, tendo acompanhado todos os procedimentos da Brigada Militar e, sem nenhum constrangimento, veio a público elogiar a selvageria oficial como uma ação “profissional”.
O pária é um natimorto; o sem terra também o é, mas quando passa a integrar o Movimento Sem Terra torna-se sujeito da história para revogar a sua condenação, pois aprende na ação concreta uma lição que a maioria do povo brasileiro apenas intui: existe uma justiça de classe no Brasil, atenta e prestativa às camadas ricas da população; míope para ver o direito dos pobres; e surda para os seus clamores.
Os párias aprenderam o ardil ideológico que as elites escondem: sabem diferenciar a linguagem dos Governos Federal, Estadual e do Poder Judiciário (que é pura retórica), a linguagem do Ministério Público Estadual (que é pura cumplicidade e subserviência aos poderosos) e a linguagem daqueles que são iguais a ele (que é pura ação).
Ao final do ato ecumênico, todos sentimos que nossa existência têm um sentido e juramos, sob a cruz cravada na terra onde Elton tombou, em continuar a nossa marcha; juramos que a cada massacre que ainda virá, iremos declarar à pátria que a Reforma Agrária carrega em si a natureza de um holocausto, mas que continuaremos a ocupar latifúndios com a altivez e a dignidade moral de quem sabe que para revogar a condenação que lhes foi imposta restou apenas o ato de cortar cercas.
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